Violência doméstica e o espiritualmente correto
Que conselho você daria para alguém que afirma estar sofrendo algum tipo de abuso físico em seu casamento, por exemplo? É claro que esse assunto é muito complicado, não existem respostas prontas para todos os casos, e o risco de se “pisar no tomate” é grande!
São três da manhã e já faz um tempo que acordei em sobressalto, com um súbito, inexplicável e vergonhoso medo de violência (e isso que quase não gasto tempo com a televisão…). Estou sozinho em casa, e me pareceu ouvir um barulho. Como alguém entrou na casa de um pastor amigo meu enquanto dormia, perdi o sono ao pensar em minha reação, caso alguém viesse me matar. Em seguida, me lembrei da meditação diária escrita por Rubem M. Scheffel para o dia 18 de janeiro de 2010, sob o titulo “Como lidar com a violencia“. Seria eu capaz de seguir ao pé da letra as sugestões do texto?
Será que a mesma ideia poderia ser estendida para os casos de agressões em famílias violentas? Resolvi abdicar da cama para escrever porque parece haver alguma inconsistência entre o senso comum e o que Jesus ensina sobre esse assunto. Em alguns casos, profissionais da saúde mental, líderes espirituais e igrejas se omitem simplesmente porque aconselhar aquilo que Cristo pregou não parece mais ser nem política nem terapeuticamente correto! Também pode parecer machista (em outros casos, feminista…). Mais fácil então é se unir ao senso comum e fugir do ridículo.
Mas, vejamos, que conselho você daria para alguém que afirma estar sofrendo algum tipo de abuso físico em seu casamento, por exemplo? É claro que esse assunto é muito complicado, não existem respostas prontas para todos os casos, e o risco de se “pisar no tomate” é grande! Mas tenho percebido que na maioria das vezes a parte agredida é estimulada ou a separar-se ou a logo romper com o silencio procurando órgãos públicos como forma de resolver a questão.
O problema é que, em lugar de recomendar a separação por esse motivo, Deus deixa muito claro que “aquilo que Deus ajuntou, não o separe o homem” (Mt 19:6). Na continuação desse texto, Jesus afirma que a única razão em que Deus admite uma separação e um novo casamento é “por causa de relações sexuais ilícitas”, ou seja, fora do casamento (Mt 19:9), e ainda assim, “por causa da dureza do vosso coração” (v. 8). Apesar de o texto deixar claro que Deus não considera a violência física como uma razão válida para a separação e um novo casamento, alguns cristãos andam flertando com essa possibilidade.
“Tudo bem. Se não devo me separar, será que Deus deseja que eu passe toda a vida sofrendo?” Claro que esse nunca foi o desejo de Deus. O problema é que estamos todos diante de um elemento que não estava no projeto original de Deus, a entrada do pecado no mundo, e, por essa causa, o próprio Filho de Deus teve que sofrer, sobre o que vamos falar mais adiante. Mas ainda acerca de romper com o silencio, tenho verificado que em alguns casos essa possibilidade acaba se tornando uma forma de chantagem: “Se você me agride, eu conto…” Isso pode até mascarar por algum tempo, mas não resolve o problema interior, que é do coração. Durante uma séria briga do casal, a mulher desafia: “Encoste a mão em mim, se você for homem… Você não é homem para fazer isso… Você sempre foi fraco, nunca valeu nada…” Ele não resiste à provocação e encosta a mão… com força, e o caso vai parar na Delegacia da Mulher – mesmo ambos sendo crentes! Quem dera esse fosse um caso isolado.
A maior parte das pessoas hoje, talvez de uma forma apressada, ou seguindo apenas a opinião da maioria, concorda que a mulher teria tomado a atitude correta. Mas como conciliar isso com 1 Coríntios 6, onde Paulo diz: “Para vergonha vo-lo digo… Mas irá um irmão a juízo contra outro irmão, e isto perante incrédulos! O só existir entre vós demandas já é completa derrota para vós outros. Por que não sofreis, antes, a injustiça? Por que não sofreis, antes, o dano?” (versos 5-7, destaque meu). Paulo deixa claro que em grande parte dos casos, o melhor seria sofrer o dano ou a injustiça. Mas em casos extremos de conflitos entre crentes, ou quando não se está disposto a sofrer por causa do erro de outra pessoa, e em havendo necessidade de um fórum, este deveria ser buscado dentro da igreja, por meio de “um sábio entre vós” (v. 5). Mas essa jamais deveria ser a primeira opção.
Normalmente se pergunta quem dos dois é o culpado, ou quem está mais errado, mas essa não é a pergunta correta. Estudos têm demonstrado que na grande maioria dos casos em que há agressão ou abuso físico, o relacionamento entre o casal é simbiótico: o agressor normalmente depende de ou procura se relacionar com uma pessoa que provoca a agressão. Por outro lado, a pessoa agredida normalmente precisa se relacionar com outra que seja violenta porque esse foi um padrão estabelecido inconscientemente durante a infância, em sua família de origem, e que acabou se tornando aceitável. Assim, a provocação e a reação da outra pessoa produzem um ganho desejável.
Como um ou ambos provavelmente cresceram dentro de uma família (dis)funcionando desse jeito, de algum modo inconsciente procuram repetir o formato que lhes é mais familiar – aquele que viram acontecer em sua própria casa, mesmo que isso continue trazendo sofrimento. Afinal, essa é a única realidade que conhecem. Na verdade, é a família como um todo que está doente, enferma, porque os elementos desse sistema estão emocionalmente doentes. Mas como fazer com que ela sare? A delação ou até a separação não tem poder para resolver o problema real: a maldade do coração humano. Segundo a teoria geral dos sistemas, uma modificação em um dos elementos do sistema provocará mudança em todo o sistema. Mas será que funciona? Qual dos elementos deveria mudar? Como mudar?
Muita gente pensa que “frequentar a igreja” seja a mudança necessária para que algo de bom ocorra. Mas a má noticia é que mesmo quando essas pessoas passam a frequentar a igreja, parece que a voz interior geralmente continua sendo mais forte do que o clamor do evangelho, e o problema continua. E então, como a igreja deveria lidar com isso? Que conselho você daria para um casal cristão que caiu nessa armadilha, nesse circulo vicioso para o qual parece não ter saída?
Existem duas maneiras de tratar do assunto: uma, humanista, secular, materialista e evolucionista; a outra maneira é a cristã (conforme Cristo). Não é minha religião que determina o modo como vou reagir, mas minha cosmovisão, minha visão de mundo. Se sou evolucionista, vou agir como evolucionista, ainda que tenha sido batizado em uma igreja cristã. É claro que, pelo menos nos dias em que vivemos, o modo humanista (evolucionista) e materialista é considerado o único viável, o mais política e terapeuticamente correto.
Tanto a violência como o seu tratamento, nesse caso, tem mesmo mais a ver com o evolucionismo que com o cristianismo – é a luta das espécies e a sobrevivência do mais apto. Nessa dinâmica, quem pode mais, chora menos, e o resultado mais provável será a separação, o que alguns já consideram como um mal menor. Já escutei muitas vezes que “seria muito pior, inclusive para os filhos, passar a vida toda brigando”. Mas será que é isso que Deus deseja? Violência e passar a vida toda brigando? Isso não seria assumir a falência do cristianismo? Se Cristo não pode mudar uma vida, merece ser seguido? Ou as igrejas não passam de clubes sociais? O evangelho é mesmo algo real ou apenas uma teoria agradável para a hora do sermão?
Por outro lado, o que acontece quando alguém se converte e se torna em uma pessoa cristã? Muitos acham que a única mudança é que essa pessoa agora passou a fazer parte de uma igreja e a usar a Bíblia debaixo do braço! Mas quando alguém se torna verdadeiramente “cristão”, isso quer dizer que Cristo (daí o nome “cristão”) passou a comandar a vida, o modo de pensar, agir e reagir. Houve entrega do seu anterior jeito de viver e o recebimento de uma nova maneira de pensar e viver – através do milagre do novo nascimento e do esforço pessoal. É uma luta diária para permanecer em Cristo e então ser nova pessoa, mas não estamos sozinhos nessa luta. Deus promete fazer Sua parte, e essa parte é um milagre: “Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o Meu Espírito e farei que andeis nos Meus estatutos, guardeis os Meus juízos e os observeis” (Ez 36:26, 27). Nossa parte é permanecer nEle, através de um programa regular e diário de comunhão com Jesus (Jo 15).
Quando uma pessoa entrega a vida para Cristo, isso quer dizer que, por desconfiar de si mesma, desistiu desta vida para dali por diante viver ou morrer através de Cristo, pensando apenas na vida dEle e na outra vida. Agora é Cristo quem manda, quem decide, quem age. É o reino futuro que toma conta do presente. Os impulsos, os desejos ainda estão lá, mas pela fé são submetidos a Cristo a cada manhã, e Ele agora toma o controle. Foi isso que Paulo quis dizer quando afirmou: “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim” (Gl 2:19, 20).
Fico impressionado ao ver como Cristo reagiu à violência, e sinto até certo desconforto ao citar isso porque para os padrões de hoje, dos filmes, das novelas e dos formadores de opinião, parece uma atitude completamente inaceitável – parece ser algo para pessoas fracas (essas que acordam com medo de ladrão entrar em casa…), doentes e incapazes, completamente inatingível para alguém que viva hoje. Mas não esqueça de que a Bíblia também diz que Ele é o Criador do Universo, o Deus Todo-Poderoso! Então, perceba que, em Isaías 53, três coisas sobressaem: (1) o que aconteceu com Cristo, ou seja, tudo o que fizeram com Ele; (2) o que Ele fez (Sua reação); e o (3) o que Ele não fez.
O que aconteceu, o que fizeram com Ele
[3] “Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer… era desprezado, e dEle não fizemos caso…” Por acaso é o desprezo que tem levado você à provocação ou à violência? Ou é a humilhação? Mas o texto continua:
[7] “Ele foi oprimido e humilhado… como cordeiro foi levado ao matadouro… [8] Por juízo opressor foi arrebatado… foi cortado da terra dos viventes… foi Ele ferido… [9]…sepultura com os perversos… [10]…ao Senhor agradou moê-Lo, fazendo-O enfermar… [12]…derramou a Sua alma na morte; foi contado com os transgressores…”
Trataram-no como transgressor, o que Ele não era. Isso foi um ultraje, algo completamente injusto! Todos temos um senso interior de justiça que clama por acertar as coisas que não estão corretas. Por incrível que pareça, é esse mesmo senso que, fora do controle do Espírito Santo, pode acabar nos levando à violência.
Outra coisa que acho extremamente interessante é o fato de que, segundo o verso 10, o sofrimento era parte integral do plano de Deus para a vida de Jesus. Tudo isso estava dentro do contexto do Grande Conflito. Tentado pelo Seu lado humano, Ele bem que pensou em escapar do sofrimento (“Pai, se possível for, passa de Mim este cálice”), mas essa possibilidade não lhe foi dada porque Seu sofrimento tinha um objetivo. Procurar escapar do sofrimento seria fugir ao plano original de Deus para Sua vida. Que tipo de ideias motiva minha maneira de lidar com o sofrimento e a violência? É apenas o desejo de escapar rapidamente do sofrimento, ignorando o contexto do Grande Conflito?
O que Ele fez
[4] “…Ele tomou sobre Si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre Si; … [5]…foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele e pelas Suas pisaduras [machucaduras] fomos sarados.”
Cristo sabia que a maneira pela qual Ele lidava com o sofrimento pessoal e as injustiças que sofria teria desdobramentos na vida de outras pessoas. Isaías diz que outros seriam “sarados” ou curados pelos Seus machucados (v. 5). Será que isso contém uma mensagem para os sistemas e famílias enfermas de hoje? Se isso está correto, existe alguma chance de que meu sofrimento pessoal ajude de algum modo a outra parte? Será? E o texto continua:
[11] “Ele verá o fruto do penoso trabalho de Sua alma e ficará satisfeito; …com o Seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre Si… [12]…porquanto derramou a Sua alma na morte… levou sobre Si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu.” Levou sobre Si o pecado de muitos! Isso quer dizer que outros erraram e foi Ele quem sofreu! Claro! Assim é o cristianismo. É o Espiritismo que ensina que quem faz é que paga… No cristianismo, um faz, o outro paga! Quando na vida de alguém a justiça está dissociada da misericórdia, sua vida é espírita, não importa a fé que professe, porque tanto no contexto evolucionista quanto no espírita não existe misericórdia nem perdão.
O que Ele não fez
[7] “Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os Seus tosquiadores, Ele não abriu a boca… [9] Designaram-Lhe a sepultura com os perversos… posto que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em Sua boca.” (Destaques meus.)
Nesta época profundamente humanista, fico imaginando o que aconteceria com os outros e comigo, que me acho cristão, se eu fosse realmente um seguidor de Cristo, fazendo tudo o que Ele fez, e não fazendo o que Ele não fez, a qualquer custo, ainda que os outros fizessem comigo o que fizeram com Ele! A força do que Ele não fez se torna inegável diante da ênfase da repetição. A Bíblia diz quatro vezes em três versos que Ele não abriu a Sua boca, ou que nela não se achou dolo algum, mesmo em meio a terríveis sofrimentos!
E nós, deveríamos fazer o mesmo? Foi pensando em Isaías 53 que Pedro afirmou que “para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos, o qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em Sua boca [a fraseologia é a mesma de Isaías]; pois Ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-Se àquele que julga retamente, carregando Ele mesmo em Seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por Suas chagas fostes sarados” (1Pd 2:21-25).
O Apóstolo deixa transparecer que no meu sofrimento pode mesmo existir cura para outros, dependendo da maneira como eu o encaro (veja também Lc 6:27-36). E quando uma mudança acontece em mim, na minha maneira de encarar o sofrimento, todo o sistema acaba sendo alterado. É isso que Paulo também afirma quando diz que “de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará…” E, então, para aqueles que só esperam resultados imediatos ele desafia: “E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não desfalecermos. Por isso, enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a todos, mas principalmente aos da família da fé” (Gl 6:7-10). O que ocorre é que hoje ninguém quer sofrer mais para nada! O consumismo, que faz tudo ser descartável, é o pai do imediatismo e das soluções rápidas. Por que sofrer um desconforto se você pode se livrar dele logo? Todo mundo sabe, por exemplo, que em cerca de 90% dos casos, por uma simples alteração/correção nos hábitos de vida ou apenas por utilizar tratamentos naturais (que normalmente são mais demorados e trabalhosos), os problemas de saúde poderiam ser resolvidos com menos prejuízo para o corpo do que quando se apela para a farmácia. Mas o melhor dá trabalho, exige sofrimento, mudanças, um preço a ser pago, e por isso as pessoas preferem os remédios. Mas o barato sai caro…
O mesmo acontece com os relacionamentos. Nem sempre o caminho mais curto é o melhor. Se nenhum elemento do sistema (da família) estiver disposto a sofrer coisa alguma, tudo fica como está e nada acontece.
Veja que no contexto imediatamente anterior ao texto de 1 Pedro, que citei há pouco, o apóstolo se reporta aos servos, dizendo: “Porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus. Pois que glória há, se, pecando e sendo esbofeteados por isso, o suportais com paciência? Se, entretanto, quando praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais com paciência, isto é grato a Deus” (1Pd 2:19, 20). Isso não é estranho? Seria “grato a Deus” que alguém seja afligido e suporte com paciência “por motivo de sua consciência para com Deus”? Com certeza, essas coisas não podem ser entendidas sem ajuda do Espírito Santo.
Agora, na continuação (capítulo 3), Pedro se dirige às esposas e aos maridos, e estende o mesmo raciocínio, aconselhando a não pagar o mal com o mal, “pois, quem quer amar a vida e ver dias felizes refreie a sua língua do mal e evite que os seus lábios falem dolosamente [novamente a mesma linguagem de Isaías]… busque a paz e empenhe-se por alcançá-la. Porque os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os Seus ouvidos estão abertos às suas suplicas, mas o rosto do Senhor está contra aqueles que praticam males” (v. 9-12). Depois acrescenta: “Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da justiça, bem-aventurados sois. Não vos amedronteis, portanto, com as suas ameaças, nem fiqueis alarmados… porque se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal” (v. 14).
Isso tudo combina com aquele texto do livro de meditações diárias, que citei no início, no qual o autor menciona um verso em que Jesus contrapõe claramente Seu ensino ao senso comum: “Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa” (Mt 5:39, 40).
Ele ainda aconselha a, em caso de violência, “nem fugir nem reagir. Quem foge geralmente é perseguido, pois a fraqueza é cúmplice da ferocidade alheia. Por outro lado, quem revida a uma agressão estimula o agressor a ser ainda mais violento…” Segundo Scheffel, “não resistir é de longe a melhor alternativa, apesar de parecer absurda. Porque é uma demonstração de coragem moral e domínio próprio, que, por serem raros, geralmente surpreendem o agressor, deixando-o confuso e envergonhado… Para Jesus, o inimigo não é um alvo a ser eliminado, mas um ser humano a ser redimido. Se não fosse assim, como poderíamos entender Suas palavras na cruz: ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem’ (Lc 23:34)?”
Tenho pensado muito em minha reação diante de agressões desse porte, já que uma simples fechada no transito me tira interiormente do sério (minha esposa acha que às vezes exteriormente também…). Estaria eu disposto a entregar a vida como fez Cristo, sem conseguir enxergar, para além da sepultura, os resultados de Sua entrega, a não ser pela fé? (Sobre esse assunto, leia também todo o capítulo 4 de 1 Pedro, onde já no verso 1 ele diz que “tendo Cristo sofrido na carne, armai-vos também vós do mesmo pensamento; pois aquele que sofreu na carne deixou o pecado”). De fato existem implicações eternas em tudo isso!
Fiquei muito impressionado quando assisti ao filme “Terra Selvagem”, que conta a história real de missionários que deixaram o conforto dos Estados Unidos para tentar evangelizar algumas tribos perdidas à beira da extinção na Amazônia equatoriana, afundadas em um circulo vicioso de vingança e violência. Quando, depois de muitas tentativas, finalmente conseguiram fazer contato com os nativos, pousando sua avioneta em um banco de areia do rio, foram atacados covardemente pelos selvagens, que mataram a todos. O incrível dessa história é que os missionários estavam armados, e poderiam facilmente ter se defendido se quisessem, e provavelmente estar vivos até hoje.
Mas seus filhos ficaram órfãos e as esposas, viúvas porque eles fizeram a escolha de morrer, ou seja, de seguir o exemplo de Cristo até o fim, pagando por isso o maior preço que existe. E o que ganharam com isso? Absolutamente nada, só perderam! Eles perderam, suas famílias perderam, os filhos perderam… houve muita perda, perda irreparável e definitiva! Quanto sofrimento para os parentes que ficaram. Filhos questionaram se Deus teria sido justo ao permitir que Seus servos morressem.
Mas sempre que há perda por um lado, há ganho por outro. E então, quem ganhou? Foi aquela tribo, porque em virtude daquela escolha dos missionários, uma sequência de acontecimentos relatados no filme acabou levando toda a tribo à conversão, rompendo completamente com o ciclo de violência, e como resultado, pela primeira vez em várias gerações, as crianças da tribo puderam conhecer os avôs. E nós que ficamos sabendo dessa história também ganhamos, e isso porque um dos assassinos, após a conversão, confessou tudo ao filho de um dos missionários a quem ele havia matado! (Os extras são tão interessantes quanto o filme.)
Não será o caso de que eu e você estejamos sendo chamados para morrer, para que através de nossa morte alguém receba vida? Não será que você e eu possamos ser o único modelo de Cristo disponível para alguém que está ao nosso lado? Será que nossa morte para esta vida não pode representar a outra vida para alguém, a vida eterna? No caso dos índios, para que o ciclo fosse quebrado, alguém precisou morrer, e vários morreram! E ao decidir não utilizar a violência e nem revidar, eles já haviam entregado a vida mesmo antes de se encontrar com os nativos. Se ela fosse tirada ou não, esse não era o caso. E em nosso caso? Para o que o Senhor está nos chamando?
Não estou querendo julgar toda a separação, que não é por adultério, como sendo ímpia, revelando total indisposição para sofrer. Por outro lado, apesar de deixar o julgamento para Deus, ao olhar para mim mesmo, estou inclinado a pensar que este é o caso da maioria – indisposição para sofrer e aceitar o jugo de Cristo. O certo é que o modo leviano como o assunto da violência e separação tem sido tratado não corresponde ao que aprendemos na Palavra de Deus. E ela nos ensina que não se rompe com um ciclo de violência e pecado sem que alguém, pelo menos um, decida morrer, se preciso for. E Cristo deixou isso muito claro na cruz. “Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os Seus passos” (1Pd 2:21).
Marcos Faiock Bomfim
São três da manhã e já faz um tempo que acordei em sobressalto, com um súbito, inexplicável e vergonhoso medo de violência (e isso que quase não gasto tempo com a televisão…). Estou sozinho em casa, e me pareceu ouvir um barulho. Como alguém entrou na casa de um pastor amigo meu enquanto dormia, perdi o sono ao pensar em minha reação, caso alguém viesse me matar. Em seguida, me lembrei da meditação diária escrita por Rubem M. Scheffel para o dia 18 de janeiro de 2010, sob o titulo “Como lidar com a violencia“. Seria eu capaz de seguir ao pé da letra as sugestões do texto?
Será que a mesma ideia poderia ser estendida para os casos de agressões em famílias violentas? Resolvi abdicar da cama para escrever porque parece haver alguma inconsistência entre o senso comum e o que Jesus ensina sobre esse assunto. Em alguns casos, profissionais da saúde mental, líderes espirituais e igrejas se omitem simplesmente porque aconselhar aquilo que Cristo pregou não parece mais ser nem política nem terapeuticamente correto! Também pode parecer machista (em outros casos, feminista…). Mais fácil então é se unir ao senso comum e fugir do ridículo.
Mas, vejamos, que conselho você daria para alguém que afirma estar sofrendo algum tipo de abuso físico em seu casamento, por exemplo? É claro que esse assunto é muito complicado, não existem respostas prontas para todos os casos, e o risco de se “pisar no tomate” é grande! Mas tenho percebido que na maioria das vezes a parte agredida é estimulada ou a separar-se ou a logo romper com o silencio procurando órgãos públicos como forma de resolver a questão.
O problema é que, em lugar de recomendar a separação por esse motivo, Deus deixa muito claro que “aquilo que Deus ajuntou, não o separe o homem” (Mt 19:6). Na continuação desse texto, Jesus afirma que a única razão em que Deus admite uma separação e um novo casamento é “por causa de relações sexuais ilícitas”, ou seja, fora do casamento (Mt 19:9), e ainda assim, “por causa da dureza do vosso coração” (v. 8). Apesar de o texto deixar claro que Deus não considera a violência física como uma razão válida para a separação e um novo casamento, alguns cristãos andam flertando com essa possibilidade.
“Tudo bem. Se não devo me separar, será que Deus deseja que eu passe toda a vida sofrendo?” Claro que esse nunca foi o desejo de Deus. O problema é que estamos todos diante de um elemento que não estava no projeto original de Deus, a entrada do pecado no mundo, e, por essa causa, o próprio Filho de Deus teve que sofrer, sobre o que vamos falar mais adiante. Mas ainda acerca de romper com o silencio, tenho verificado que em alguns casos essa possibilidade acaba se tornando uma forma de chantagem: “Se você me agride, eu conto…” Isso pode até mascarar por algum tempo, mas não resolve o problema interior, que é do coração. Durante uma séria briga do casal, a mulher desafia: “Encoste a mão em mim, se você for homem… Você não é homem para fazer isso… Você sempre foi fraco, nunca valeu nada…” Ele não resiste à provocação e encosta a mão… com força, e o caso vai parar na Delegacia da Mulher – mesmo ambos sendo crentes! Quem dera esse fosse um caso isolado.
A maior parte das pessoas hoje, talvez de uma forma apressada, ou seguindo apenas a opinião da maioria, concorda que a mulher teria tomado a atitude correta. Mas como conciliar isso com 1 Coríntios 6, onde Paulo diz: “Para vergonha vo-lo digo… Mas irá um irmão a juízo contra outro irmão, e isto perante incrédulos! O só existir entre vós demandas já é completa derrota para vós outros. Por que não sofreis, antes, a injustiça? Por que não sofreis, antes, o dano?” (versos 5-7, destaque meu). Paulo deixa claro que em grande parte dos casos, o melhor seria sofrer o dano ou a injustiça. Mas em casos extremos de conflitos entre crentes, ou quando não se está disposto a sofrer por causa do erro de outra pessoa, e em havendo necessidade de um fórum, este deveria ser buscado dentro da igreja, por meio de “um sábio entre vós” (v. 5). Mas essa jamais deveria ser a primeira opção.
Normalmente se pergunta quem dos dois é o culpado, ou quem está mais errado, mas essa não é a pergunta correta. Estudos têm demonstrado que na grande maioria dos casos em que há agressão ou abuso físico, o relacionamento entre o casal é simbiótico: o agressor normalmente depende de ou procura se relacionar com uma pessoa que provoca a agressão. Por outro lado, a pessoa agredida normalmente precisa se relacionar com outra que seja violenta porque esse foi um padrão estabelecido inconscientemente durante a infância, em sua família de origem, e que acabou se tornando aceitável. Assim, a provocação e a reação da outra pessoa produzem um ganho desejável.
Como um ou ambos provavelmente cresceram dentro de uma família (dis)funcionando desse jeito, de algum modo inconsciente procuram repetir o formato que lhes é mais familiar – aquele que viram acontecer em sua própria casa, mesmo que isso continue trazendo sofrimento. Afinal, essa é a única realidade que conhecem. Na verdade, é a família como um todo que está doente, enferma, porque os elementos desse sistema estão emocionalmente doentes. Mas como fazer com que ela sare? A delação ou até a separação não tem poder para resolver o problema real: a maldade do coração humano. Segundo a teoria geral dos sistemas, uma modificação em um dos elementos do sistema provocará mudança em todo o sistema. Mas será que funciona? Qual dos elementos deveria mudar? Como mudar?
Muita gente pensa que “frequentar a igreja” seja a mudança necessária para que algo de bom ocorra. Mas a má noticia é que mesmo quando essas pessoas passam a frequentar a igreja, parece que a voz interior geralmente continua sendo mais forte do que o clamor do evangelho, e o problema continua. E então, como a igreja deveria lidar com isso? Que conselho você daria para um casal cristão que caiu nessa armadilha, nesse circulo vicioso para o qual parece não ter saída?
Existem duas maneiras de tratar do assunto: uma, humanista, secular, materialista e evolucionista; a outra maneira é a cristã (conforme Cristo). Não é minha religião que determina o modo como vou reagir, mas minha cosmovisão, minha visão de mundo. Se sou evolucionista, vou agir como evolucionista, ainda que tenha sido batizado em uma igreja cristã. É claro que, pelo menos nos dias em que vivemos, o modo humanista (evolucionista) e materialista é considerado o único viável, o mais política e terapeuticamente correto.
Tanto a violência como o seu tratamento, nesse caso, tem mesmo mais a ver com o evolucionismo que com o cristianismo – é a luta das espécies e a sobrevivência do mais apto. Nessa dinâmica, quem pode mais, chora menos, e o resultado mais provável será a separação, o que alguns já consideram como um mal menor. Já escutei muitas vezes que “seria muito pior, inclusive para os filhos, passar a vida toda brigando”. Mas será que é isso que Deus deseja? Violência e passar a vida toda brigando? Isso não seria assumir a falência do cristianismo? Se Cristo não pode mudar uma vida, merece ser seguido? Ou as igrejas não passam de clubes sociais? O evangelho é mesmo algo real ou apenas uma teoria agradável para a hora do sermão?
Por outro lado, o que acontece quando alguém se converte e se torna em uma pessoa cristã? Muitos acham que a única mudança é que essa pessoa agora passou a fazer parte de uma igreja e a usar a Bíblia debaixo do braço! Mas quando alguém se torna verdadeiramente “cristão”, isso quer dizer que Cristo (daí o nome “cristão”) passou a comandar a vida, o modo de pensar, agir e reagir. Houve entrega do seu anterior jeito de viver e o recebimento de uma nova maneira de pensar e viver – através do milagre do novo nascimento e do esforço pessoal. É uma luta diária para permanecer em Cristo e então ser nova pessoa, mas não estamos sozinhos nessa luta. Deus promete fazer Sua parte, e essa parte é um milagre: “Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o Meu Espírito e farei que andeis nos Meus estatutos, guardeis os Meus juízos e os observeis” (Ez 36:26, 27). Nossa parte é permanecer nEle, através de um programa regular e diário de comunhão com Jesus (Jo 15).
Quando uma pessoa entrega a vida para Cristo, isso quer dizer que, por desconfiar de si mesma, desistiu desta vida para dali por diante viver ou morrer através de Cristo, pensando apenas na vida dEle e na outra vida. Agora é Cristo quem manda, quem decide, quem age. É o reino futuro que toma conta do presente. Os impulsos, os desejos ainda estão lá, mas pela fé são submetidos a Cristo a cada manhã, e Ele agora toma o controle. Foi isso que Paulo quis dizer quando afirmou: “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim” (Gl 2:19, 20).
Fico impressionado ao ver como Cristo reagiu à violência, e sinto até certo desconforto ao citar isso porque para os padrões de hoje, dos filmes, das novelas e dos formadores de opinião, parece uma atitude completamente inaceitável – parece ser algo para pessoas fracas (essas que acordam com medo de ladrão entrar em casa…), doentes e incapazes, completamente inatingível para alguém que viva hoje. Mas não esqueça de que a Bíblia também diz que Ele é o Criador do Universo, o Deus Todo-Poderoso! Então, perceba que, em Isaías 53, três coisas sobressaem: (1) o que aconteceu com Cristo, ou seja, tudo o que fizeram com Ele; (2) o que Ele fez (Sua reação); e o (3) o que Ele não fez.
O que aconteceu, o que fizeram com Ele
[3] “Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer… era desprezado, e dEle não fizemos caso…” Por acaso é o desprezo que tem levado você à provocação ou à violência? Ou é a humilhação? Mas o texto continua:
[7] “Ele foi oprimido e humilhado… como cordeiro foi levado ao matadouro… [8] Por juízo opressor foi arrebatado… foi cortado da terra dos viventes… foi Ele ferido… [9]…sepultura com os perversos… [10]…ao Senhor agradou moê-Lo, fazendo-O enfermar… [12]…derramou a Sua alma na morte; foi contado com os transgressores…”
Trataram-no como transgressor, o que Ele não era. Isso foi um ultraje, algo completamente injusto! Todos temos um senso interior de justiça que clama por acertar as coisas que não estão corretas. Por incrível que pareça, é esse mesmo senso que, fora do controle do Espírito Santo, pode acabar nos levando à violência.
Outra coisa que acho extremamente interessante é o fato de que, segundo o verso 10, o sofrimento era parte integral do plano de Deus para a vida de Jesus. Tudo isso estava dentro do contexto do Grande Conflito. Tentado pelo Seu lado humano, Ele bem que pensou em escapar do sofrimento (“Pai, se possível for, passa de Mim este cálice”), mas essa possibilidade não lhe foi dada porque Seu sofrimento tinha um objetivo. Procurar escapar do sofrimento seria fugir ao plano original de Deus para Sua vida. Que tipo de ideias motiva minha maneira de lidar com o sofrimento e a violência? É apenas o desejo de escapar rapidamente do sofrimento, ignorando o contexto do Grande Conflito?
O que Ele fez
[4] “…Ele tomou sobre Si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre Si; … [5]…foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele e pelas Suas pisaduras [machucaduras] fomos sarados.”
Cristo sabia que a maneira pela qual Ele lidava com o sofrimento pessoal e as injustiças que sofria teria desdobramentos na vida de outras pessoas. Isaías diz que outros seriam “sarados” ou curados pelos Seus machucados (v. 5). Será que isso contém uma mensagem para os sistemas e famílias enfermas de hoje? Se isso está correto, existe alguma chance de que meu sofrimento pessoal ajude de algum modo a outra parte? Será? E o texto continua:
[11] “Ele verá o fruto do penoso trabalho de Sua alma e ficará satisfeito; …com o Seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre Si… [12]…porquanto derramou a Sua alma na morte… levou sobre Si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu.” Levou sobre Si o pecado de muitos! Isso quer dizer que outros erraram e foi Ele quem sofreu! Claro! Assim é o cristianismo. É o Espiritismo que ensina que quem faz é que paga… No cristianismo, um faz, o outro paga! Quando na vida de alguém a justiça está dissociada da misericórdia, sua vida é espírita, não importa a fé que professe, porque tanto no contexto evolucionista quanto no espírita não existe misericórdia nem perdão.
O que Ele não fez
[7] “Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os Seus tosquiadores, Ele não abriu a boca… [9] Designaram-Lhe a sepultura com os perversos… posto que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em Sua boca.” (Destaques meus.)
Nesta época profundamente humanista, fico imaginando o que aconteceria com os outros e comigo, que me acho cristão, se eu fosse realmente um seguidor de Cristo, fazendo tudo o que Ele fez, e não fazendo o que Ele não fez, a qualquer custo, ainda que os outros fizessem comigo o que fizeram com Ele! A força do que Ele não fez se torna inegável diante da ênfase da repetição. A Bíblia diz quatro vezes em três versos que Ele não abriu a Sua boca, ou que nela não se achou dolo algum, mesmo em meio a terríveis sofrimentos!
E nós, deveríamos fazer o mesmo? Foi pensando em Isaías 53 que Pedro afirmou que “para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos, o qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em Sua boca [a fraseologia é a mesma de Isaías]; pois Ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-Se àquele que julga retamente, carregando Ele mesmo em Seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por Suas chagas fostes sarados” (1Pd 2:21-25).
O Apóstolo deixa transparecer que no meu sofrimento pode mesmo existir cura para outros, dependendo da maneira como eu o encaro (veja também Lc 6:27-36). E quando uma mudança acontece em mim, na minha maneira de encarar o sofrimento, todo o sistema acaba sendo alterado. É isso que Paulo também afirma quando diz que “de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará…” E, então, para aqueles que só esperam resultados imediatos ele desafia: “E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não desfalecermos. Por isso, enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a todos, mas principalmente aos da família da fé” (Gl 6:7-10). O que ocorre é que hoje ninguém quer sofrer mais para nada! O consumismo, que faz tudo ser descartável, é o pai do imediatismo e das soluções rápidas. Por que sofrer um desconforto se você pode se livrar dele logo? Todo mundo sabe, por exemplo, que em cerca de 90% dos casos, por uma simples alteração/correção nos hábitos de vida ou apenas por utilizar tratamentos naturais (que normalmente são mais demorados e trabalhosos), os problemas de saúde poderiam ser resolvidos com menos prejuízo para o corpo do que quando se apela para a farmácia. Mas o melhor dá trabalho, exige sofrimento, mudanças, um preço a ser pago, e por isso as pessoas preferem os remédios. Mas o barato sai caro…
O mesmo acontece com os relacionamentos. Nem sempre o caminho mais curto é o melhor. Se nenhum elemento do sistema (da família) estiver disposto a sofrer coisa alguma, tudo fica como está e nada acontece.
Veja que no contexto imediatamente anterior ao texto de 1 Pedro, que citei há pouco, o apóstolo se reporta aos servos, dizendo: “Porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus. Pois que glória há, se, pecando e sendo esbofeteados por isso, o suportais com paciência? Se, entretanto, quando praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais com paciência, isto é grato a Deus” (1Pd 2:19, 20). Isso não é estranho? Seria “grato a Deus” que alguém seja afligido e suporte com paciência “por motivo de sua consciência para com Deus”? Com certeza, essas coisas não podem ser entendidas sem ajuda do Espírito Santo.
Agora, na continuação (capítulo 3), Pedro se dirige às esposas e aos maridos, e estende o mesmo raciocínio, aconselhando a não pagar o mal com o mal, “pois, quem quer amar a vida e ver dias felizes refreie a sua língua do mal e evite que os seus lábios falem dolosamente [novamente a mesma linguagem de Isaías]… busque a paz e empenhe-se por alcançá-la. Porque os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os Seus ouvidos estão abertos às suas suplicas, mas o rosto do Senhor está contra aqueles que praticam males” (v. 9-12). Depois acrescenta: “Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da justiça, bem-aventurados sois. Não vos amedronteis, portanto, com as suas ameaças, nem fiqueis alarmados… porque se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal” (v. 14).
Isso tudo combina com aquele texto do livro de meditações diárias, que citei no início, no qual o autor menciona um verso em que Jesus contrapõe claramente Seu ensino ao senso comum: “Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa” (Mt 5:39, 40).
Ele ainda aconselha a, em caso de violência, “nem fugir nem reagir. Quem foge geralmente é perseguido, pois a fraqueza é cúmplice da ferocidade alheia. Por outro lado, quem revida a uma agressão estimula o agressor a ser ainda mais violento…” Segundo Scheffel, “não resistir é de longe a melhor alternativa, apesar de parecer absurda. Porque é uma demonstração de coragem moral e domínio próprio, que, por serem raros, geralmente surpreendem o agressor, deixando-o confuso e envergonhado… Para Jesus, o inimigo não é um alvo a ser eliminado, mas um ser humano a ser redimido. Se não fosse assim, como poderíamos entender Suas palavras na cruz: ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem’ (Lc 23:34)?”
Tenho pensado muito em minha reação diante de agressões desse porte, já que uma simples fechada no transito me tira interiormente do sério (minha esposa acha que às vezes exteriormente também…). Estaria eu disposto a entregar a vida como fez Cristo, sem conseguir enxergar, para além da sepultura, os resultados de Sua entrega, a não ser pela fé? (Sobre esse assunto, leia também todo o capítulo 4 de 1 Pedro, onde já no verso 1 ele diz que “tendo Cristo sofrido na carne, armai-vos também vós do mesmo pensamento; pois aquele que sofreu na carne deixou o pecado”). De fato existem implicações eternas em tudo isso!
Fiquei muito impressionado quando assisti ao filme “Terra Selvagem”, que conta a história real de missionários que deixaram o conforto dos Estados Unidos para tentar evangelizar algumas tribos perdidas à beira da extinção na Amazônia equatoriana, afundadas em um circulo vicioso de vingança e violência. Quando, depois de muitas tentativas, finalmente conseguiram fazer contato com os nativos, pousando sua avioneta em um banco de areia do rio, foram atacados covardemente pelos selvagens, que mataram a todos. O incrível dessa história é que os missionários estavam armados, e poderiam facilmente ter se defendido se quisessem, e provavelmente estar vivos até hoje.
Mas seus filhos ficaram órfãos e as esposas, viúvas porque eles fizeram a escolha de morrer, ou seja, de seguir o exemplo de Cristo até o fim, pagando por isso o maior preço que existe. E o que ganharam com isso? Absolutamente nada, só perderam! Eles perderam, suas famílias perderam, os filhos perderam… houve muita perda, perda irreparável e definitiva! Quanto sofrimento para os parentes que ficaram. Filhos questionaram se Deus teria sido justo ao permitir que Seus servos morressem.
Mas sempre que há perda por um lado, há ganho por outro. E então, quem ganhou? Foi aquela tribo, porque em virtude daquela escolha dos missionários, uma sequência de acontecimentos relatados no filme acabou levando toda a tribo à conversão, rompendo completamente com o ciclo de violência, e como resultado, pela primeira vez em várias gerações, as crianças da tribo puderam conhecer os avôs. E nós que ficamos sabendo dessa história também ganhamos, e isso porque um dos assassinos, após a conversão, confessou tudo ao filho de um dos missionários a quem ele havia matado! (Os extras são tão interessantes quanto o filme.)
Não será o caso de que eu e você estejamos sendo chamados para morrer, para que através de nossa morte alguém receba vida? Não será que você e eu possamos ser o único modelo de Cristo disponível para alguém que está ao nosso lado? Será que nossa morte para esta vida não pode representar a outra vida para alguém, a vida eterna? No caso dos índios, para que o ciclo fosse quebrado, alguém precisou morrer, e vários morreram! E ao decidir não utilizar a violência e nem revidar, eles já haviam entregado a vida mesmo antes de se encontrar com os nativos. Se ela fosse tirada ou não, esse não era o caso. E em nosso caso? Para o que o Senhor está nos chamando?
Não estou querendo julgar toda a separação, que não é por adultério, como sendo ímpia, revelando total indisposição para sofrer. Por outro lado, apesar de deixar o julgamento para Deus, ao olhar para mim mesmo, estou inclinado a pensar que este é o caso da maioria – indisposição para sofrer e aceitar o jugo de Cristo. O certo é que o modo leviano como o assunto da violência e separação tem sido tratado não corresponde ao que aprendemos na Palavra de Deus. E ela nos ensina que não se rompe com um ciclo de violência e pecado sem que alguém, pelo menos um, decida morrer, se preciso for. E Cristo deixou isso muito claro na cruz. “Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os Seus passos” (1Pd 2:21).
Marcos Faiock Bomfim
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